domingo, 26 de janeiro de 2014

Praxe ou Praxes?

Pensei em escrever um texto cheio de argumentos em desfavor da praxe, mas depois pensei, para quê? Já alguém tentou demover um defensor das touradas de barrancos da barbárie que comete, um fanático religioso da sua crença ou um defensor ferrenho do seu clube futebolístico?  Eu já, mas perco sempre… e perco porque o que legitima a sua ação não são argumentos baseados na razão, mas a emoção: a emoção dos golos marcados pela equipa, e emoção de ver um touro sangrar na arena, a emoção de se saber mártir de uma causa  para depois contar com 72 virgens no céu… contra a emoção não há argumentos de razão… Nestes tempos uma das palavras mais ouvidas é a tradição: “ nas tradições não se mexe…” eh pá, onde é que eu já ouvi isto? O mesmo argumento  servia noutros tempos para legitimar o facto das mulheres não poderem votar, os homens não poderem fazer lides domésticas, abusos de todo o género; arrepia-me e sempre me arrepiou a palavra tradição quando serve para legitimar o mesmo estado de coisas que não admite a razão, tenho-me lixado bem com esta postura, mas é uma necessidade para mim fazê-lo,  é que tenho este vício de gostar de ver as razões por detrás daquilo que faço, mas neste país isto é um crime que se paga caro, tão caro como o pagam os estudantes que se oponham à praxe, vá lá sejam honestos haverá mesmo liberdade de escolha? Não são ostracizados, segregados, minimizados os que se opõem?
Cabe-me fazer bem a distinção entre as praxes, pois não há praxe, mas sim praxes. Há aquelas praxes que são brincadeiras onde não há abusos, onde reina o respeito mútuo, onde os caloiros não são levados a fazer figuras de estúpidos com orelhas de burro – aquele hábito antigo e estúpido, lembram-se das professoras das escolas primárias? É pá é que é mesmo chato ver rapazes e raparigas que até nem são estúpidos ou burros fazerem – note-se, voluntariamente – figura disso; é que digam o que disserem: “ só percebe da praxe quem a viveu”, há todo um conjunto de absurdos que as pessoas veem na rua e há sempre o velho ditado, que por ser velho também é tradição “ Mais vale sê-lo do que parecê-lo; e as pessoas veem figuras de parvo, figuras de javardolas, de mal “educadês” … E antes que me critiquem o neologismo era isso que eu gostava de ver os jovens fazer: criarem coisas novas; é que os palavrões com que se “acarinham” uns aos outros já são muito velhos, tão velhos como as tradições absurdas que tão fervorosamente defendem; mas digo já que só estou a a falar das tradições absurdas, aprecio o que vai ficando de geração em geração impondo-se pela sua validade. Sou completamente a favor da integração ao caloiro: estar numa cidade nova, pela primeira vez sozinho não é nada fácil; só que, não sei porquê, não consigo é fazer a ponte entre acolher, ajudar, integrar e os litros de vinho e cerveja entornados - para dentro e para fora -, gritos de ordem de caloiros masculinos: “ eu a levar no cu não sou uma menina…” ; simulação de atos sexuais; bosta a cobrir o corpo, ad infinitum; mas também reconheço que deve ser uma limitação cognitiva minha.
Os pais estão preocupados, devido ao que se passou no Meco, devido ao facto de serem perigosas as praxes, eu penso que retirando o facto de ter, provavelmente, sido uma praxe que correu mal, os pais descansem porque as praxes no seu geral não são perigosas: são estúpidas, porcas e ridículas  visando o tão valorizado controlo social através do medo: haverá medo maior do que ser desprezado? Gozado? Ridicularizado?  
Também dispenso ouvir – para justificar o injustificável -  falar das amizades que se fazem para a vida, da emoção de um fado cantado num timbre único e emocionante – que adoro – do espírito de interajuda: estou em Coimbra e já conheci gente oriunda de países que nunca imaginei, fiz amigos que considero serem para a vida e vivi e vivo a emoção da minha faculdade fazer parte do Património  da Humanidade; surpresa : não fui praxada…Se compro um pacote de bolachas sortidas sou obrigada a gostar de todas? Mais um vicio tramado meu, só gosto das boas…Urge separar o trigo do joio…
“Isto não é praxe”, “na minha faculdade não é assim”, “ Chamam praxe a atos de desrespeito” É isso mesmo, insurjam-se estudantes de Coimbra, e venham dizer de uma vez por todas então o que é… e escrevam para ficar para a posteridade, para quando forem os vossos filhos a entrar na Faculdade poderem reportar abusos sem serem penalizados e já agora ensinem-lhes depois que as regras se podem sempre questionar e quem sabe quebrar… E sejam sempre os primeiros a condenar os abusos em vez de quererem matar o mensageiro. 

Maria João Varela



sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O meu beijo?

“O meu beijo?” Esticavas os lábios num pedido eloquente tão carente de afeto, tão despojado do falso orgulho que outrora te tornara numa das personagens mais imponentes que tinha conhecido; ademais eras uma figura atemorizadora. Gostavas de arrebatar corações com as tuas paixões que não admitiam oposição e parecias invencível, qual fortaleza que tenha sobrevivido às intempéries dos séculos e sanha destruidora da época moderna. Eras tão sóbrio de espírito com uma clareza de ideias a toda a prova que desmontava argumentos opositores como uma criança desmonta, ao fim do dia, os seus brinquedos de lego. “ O meu beijo?” – repetias agora até que eu te fizesse a vontade e me levantasse pela enésima vez para te acariciar e beijar as faces cujo relampejo durava apenas um segundo para voltar ao embotamento que agora se  te ia colando às pregas fundas de uma pele tanto menos atrativa quanto mais necessitada de beijos. Mantinhas teimosamente a lucidez para nos privares do consolo de te saber inconsciente da tua condição de velho, retiravas-nos essa tranquilidade de consciência para que nos acercássemos de ti para nos poderes pedir o beijo.
Passavas agora os dias a olhar por uma janela aberta para o infinito, num vazio existencial sem finalidade nem propósito que não ver passar as visitas que se aventuravam a testemunhar-te a queda. Muitos não vinham só para não terem de te encarar nas tuas fraquezas como se ao testemunharem-no fossem também eles cúmplices de tamanha injustiça. Não nos ensinam a perder; viver é ganhar, é subir, é crescer, mas é também cair e isso ninguém ensina, ou somos nós que não aprendemos…

 Nunca nos preparamos para este devir, nunca fazemos planos para este tempo em que o tempo deixa de ser parcelado e passa a um continuum onde a única coisa que destoa,  para além do dia e da noite, que quebra a monotonia da paisagem de dias monótonos, iguais entre si, será  a presença de afeto. Quem se prepararia para o inferno? Preparar-se seria já viver  o tédio da espera, de alguém que se lembre da morada de um velho sombrio, quando as luzes de mil atratividades chamam a esquecer esse dia, o nosso dia de pedir o beijo que não vem…

Maria João Varela


terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Falidos

Falimos. Esta sociedade está falida porque já não existe a moeda de troca com que nos endrominaram, fazendo acreditar que teríamos justiça e paz, onde não prevaleceria a luta de todos contra todos; só teríamos de abdicar da nossa liberdade herdada à nascença e poderíamos ver desabrochar todo o nosso potencial humano enquanto as injustiças criadas pela própria natureza onde uns nascem mais preparados para se adaptarem do que outros seriam amenizadas. Uma sociedade onde mães de família trabalham de sol a sol para dar de comer aos filhos e mesmo assim têm de ir pedir às instituições de caridade, onde senhoras de 90 anos vêm os filhos – com 50 e mais anos – regressar com os netos e ajeitarem-se como podem num chão frio onde se improvisam uns colchões, onde as crianças vão para a escola com fome comprometendo as suas capacidades cognitivas e o futuro de um país; essa sociedade está falida.
Atiram-nos com números à cara. Números. Para essa gente de gabinete as pessoas são números, como o eram para o regime nazi e para todos os outros regimes cobardes que não têm coragem de encarar a dor cara a cara. Razão tem o escritor António Lobo Antunes quando diz que “essa gente vem de uma incubadora partidária e lá se mantém…” nunca saíram da incubadora e por isso não conhecem a realidade e também não conhecem a História, esta de letra maiúscula que nos conta que todos os regimes que negaram as evidências, fecharam os olhos à realidade estavam já no seu começo do fim… Atiram-nos com os números: desemprego a baixar. À custa de quê? Imigração e pessoas ocupadas duas horas por dia? E pessoas a trabalhar abaixo do ordenado mínimo? Só não sei se concordo com o escritor que num olhar poetizado nos diz serem os portugueses príncipes; serão príncipes ou mártires em causa alheia?
Estamos falidos. Uma pequena minoria da sociedade civil vai aguentando as estruturas de um império em queda, mas sendo uma queda inevitável só estão a dar os cuidados paliativos ao moribundo, que tarda entretanto em falecer e dar origem a uma sociedade mais ética. A ética que não tem a casta que nos governa e que talvez só terá uma outra geração criada com valores diferentes. De que nos valeu o Contrato Social em que abdicámos da liberdade de nos defendermos como dita a natureza? Serviu-nos apenas para entregarmos todo o nosso esforço em mãos caprichosas que não redistribui a riqueza? Então mais vale trazermo-la de volta que ao menos correremos em prados verdejantes até sermos mortos por um qualquer espécime maior ou mais forte do que nós, mas sabemos que a vida é isso mesmo a luta do mais forte. Agora a injustiça mascarada?

Numa coisa junto-me a Lobo Antunes: na injustiça que está a ser feita, onde os espécimes da pior raça estão a empanturrar-se enquanto veem os seus próximos enlameados e caídos pedindo uma esmola… estamos mesmo falidos, só ainda não pedimos foi a insolvência…

Maria João Varela


sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Aventuras num hospital psiquiátrico

As paredes do hospital eram de um branco encardido e o cheiro, embora ali não houvesse feridas para desinfetar, era o característico dos hospitais como se o cheiro do sofrimento, fosse ele qual fosse, emprestasse às enfermarias independentemente da especialidade de pertença o mesmo cheiro antissético , o mesmo que embora fosse desnecessário poderia afastar o cheiro a calor humano, precioso, se existisse. O pijama largo e às riscas finas, azuladas era igual ao dos outros pacientes, farda imprescindível dos loucos e atrasados que conheciam o seu lugar e permaneciam cada qual com o seu distúrbio unidos num qualquer laço de familiaridade e não se percebendo bem porquê unidos contra o pessoal que prestava os (in)devidos cuidados de saúde; não tinha importância, contudo, se era bonita ou feia a indumentária, o aspeto físico há muito tinha perdido o interesse e enquanto me arrastava para o gabinete do psiquiatra, passos ainda cambaleantes, pensava já na forma de escapar daquele lugar o mais rapidamente possível. Era verdade que ainda nos cuidados intensivos tinha acedido ao pedido de me deixar internar na psiquiatria, muito por culpa dos tratos carinhosos que lá me tinham sido facultados, mas agora que me encontrava lá, junto com toda a panóplia de doenças mentais imaginárias, sabia que corria sérios riscos de ficar pior do que à entrada. Mais a mais quando me começaram a medicar sem ainda deixar de estar  intoxicada pela quantidade astronómica de barbitúricos que tinha ingerido para pôr fim a uma vida que se tornava de um cinzento insuportável, onde a graça e as cores já não existiam mais… A  enfermeira de serviço irritada  perante a minha resistência à tomada dos mesmos: “ então agora não gosta de comprimidos? Está muito esquisita para quem acabou de tomar uma dose extra.” Claro que ainda não tinha o crítico interno a funcionar bem e tratei-a mal com uma réstia das forças que me tinham sobrado da luta de meses contra uma depressão galopante. Fui acusada de não cooperar e o doutor que tão prontamente me tinha receitado as pílulas cujas cores garridas causam a dependência, muito por culpa da aparência lúdica que têm, achou por bem tentar trazer-se à razão pelo que me fiz ao gabinete pronta a confrontá-lo. Mostrou-se fino nos tratos e quase me convencia da superior vantagem que seria para mim naquele momento tomá-los, ainda turva das ideias do louco desvario que tinha tentado cometer, mas fingi ouvi-lo pois a lucidez começava a surgir e achei por bem aquiescer até porque a matrafona da enfermeira me tinha ameaçado forçar a toma dos mesmos com o recurso a camisa de forças, se preciso fosse, como se vê nos filmes: “é que vai à força se for preciso!” Vingou a minha rebeldia e intimamente até me divertia quando uma semana mais tarde diziam aos meus familiares poderem deixar-me sair, se assinassem um termo de responsabilidade, pois os antidepressivos, os mesmo que eu fingia tomar enquanto a matrafona me olhava pelo canto do olho para os despejar de seguida pela sanita abaixo, estavam a fazer efeito e eu estava a melhorar a olhos vistos.

Maria João Varela

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Que seria do amor?

Já passava da hora. A hora habitual quando te despedias em bicos de pés e com um afago nos meus cabelos largavas os lençóis que deixavas sem remorsos abandonados e frios, sombrios e sem as formas sedutoras com que os enformavas a eles. Tardavas. E eu perguntava por que haverias tu de te prolongar na tortura da despedida prolongando desse jeito o meu desespero também. Por que contam as horas para os amantes? O amor não tem hora. O amor apega-se à pele, entranha-se na carne e já não sai, nem à força das badaladas do sino da igreja que ciumento deixa as horas passarem mais depressa… Deixavas-me entregue aos mesmos desvarios, também eu só e abandonada. “Voltará?” Pensava eu. E os lençóis pareciam gemer com a dor da tua falta… caía-me uma lágrima. Tardavas. Eu enroscava-me um pouco mais saboreando de avanço a dor da partida na hora em que o amor parece mais forte pela força emprestada pela saudade… Respiravas fundo, dormirias embalado pelos momentos de amor vivido, num prolongamento sonhado? Ter-te-ias esquecido das horas? As horas, essas mesmas que tanto amor roubam aos amantes deixando um doce rasto de “já vivido”, uma doce e suave lembrança nas bocas sedentas de mais e mais prazer.   O amor não tem hora, nem idade, não cabe em cronologias humanas; é o castigo que os deuses dão encurtando a vida, acelerando as horas ao ritmo dos corações. Imaginava-te levantando-te, nu, trocando os lençóis pelas calças que ganhavam vida começando a andar… andar para longe. Por que razão sorrias agora? Olhava-te no teu enlevo e não queria mais nada, somente que não passassem as horas, as mesmas que apesar disso teimavam em acelerar. Tardava. Amanhecia quase, como era possível que te tivesses esquecido delas? Das mesmas que te roubavam de mim? Sabe-se que há amor quando as horas correm em vez de passarem no seu leve balançar. Chamei-te: “ amor, amor, são horas.” Nada. Só um suspiro mais profundo e mandaste as mesmas às urtigas. Agora mais forte: “amor, não te atrases” como se o amor se cingisse ao tempo, logo ele que é intemporal… “Hã? Ah, não te disse! Eu não vou, aliás, não vou mais…” Assim, sem mais. Acabavas-me com a promessa de um despertar agridoce, em que já eras só uma lembrança, em que o amor perdurava nos sentidos da memória e avolumava-se na tua ausência. E agora? Calavam-se as badaladas  do relógio que se sentia vingado podendo reduzir a marcha ao saber-te meu, sem outros entraves. Deixáramos de ser amantes sequiosos, os dias poderiam agora ser mais lentos,  seguir o ritmo habitual; fora-se a urgência, mas assim  sem despedidas nem cama vazia, sem o choro dos lençóis  sem o peso da partida, sem saudade, sem a minha lágrima, que seria do amor?   

Maria João Varela

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A conquista do ponto "G"

Ao homem foi dado desbravar continentes e vencer tempestades conquistando impérios ao dominar os oceanos, passou o cabo das tormentas para chegar a terra firme;  matou, esventrou e foi dono e senhor dos impérios conquistados a golpe de afiadas espadas; a mulher conquistou o ponto G e foi essa a sua maior conquista. Claro que ao ser conhecedora de que o criador não a tinha castrado, como acreditava Freud, que não era desmerecedora dos prazeres carnais e que não era por isso mesmo responsável pela queda e expulsão do paraíso, imbuída dessa confiança partiu para outras conquistas… ora o homem não gostou. Para além das conquistas que lhe eram asseguradas bastando desembainhar a espada, teria agora de conquistar o cume das conquistas femininas pois esta tinha ido à lua e já não se contentava com algum macho incapaz de lhe aflorar a bandeira.
Pode parecer redutora a teoria da conquista feminina ser o dito ponto “G” que tantos detratores se negam a aceitar, mas não: é que saber-se digna do maior prazer à face da terra - concupiscente é certo -  levou a mulher a acreditar ser digna de todas as outras coisas também; senão por que razão haveria o criador de a prendar com um tal éden não fora a intenção de lhe suavizar o caminho rumo a conquistas mais modestas, mas mais duras? Não é à toa que em todas as sociedades onde a revolução sexual não entrou as mulheres se sintam indignas de conquistar outros terrenos pois sentindo-se menos capazes que o homem nesse âmbito, sentem-no nos outros também, nem é tampouco inócuo o facto dessas mesmas sociedades lhes negarem tal direito com casamentos arranjados, violações, excisões e outras barbaridades. Não se minimize pois a conquista o ponto “G” pois enquanto o homem andava em sangrentas batalhas a mulher, sabe-se lá por que meios, foi conquistando e conhecendo o seu corpo por tantos séculos conspurcado e defraudado acusado de ser o templo do pecado, o homem fazia por isso pois tremia de terror que a mulher ao se conquistar a si mesma, ao saber que não  veio a existir só para  parir com dor como tão biblicamente lhe apregoavam as escrituras, fosse conquistando os terrenos que eram seus pela força.
A mulher veio a conquistar, não pela força, nem pela espada, mas pela inteligência e confiança que lhe era dada pela ida à lua onde deixou a bandeira e onde só um homem verdadeiramente corajoso se atreveria na travessia, que é feita a dois, mas que no final premeia também quem se arriscou. Ganharam os dois nessa conquista feminina: a mulher porque se soube capaz de outras paradas, o homem porque soube que a mulher não lhe quer roubar nada, apenas tão e só o que é seu por direito, ou seja, tudo…






Maria João Varela